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A poeta de sábado é Conceição Evaristo


(foto de Leo Martins, O Globo, 2020)


Nascida em Belo Horizonte em 1946, Conceição Evaristo é doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Também é escritora de contos e romances premiados, participou de diversas antologias e foi publicada em Paris pela editora Anacaona. O poema abaixo é de seu livro "Poemas da recordação e outros movimentos", Editora Male, 2017.




Conceição Evaristo

Depoimento no I Colóquio de Escritoras Mineiras

Belo Horizonte, Maio de 2009



Sou mineira, filha dessa cidade, meu registro informa que nasci no dia 29 de novembro de 1946. Essa informação deve ter sido dada por minha mãe, Joana Josefina Evaristo, na hora de me registrar, por isso acredito ser verdadeira. Mãe, hoje com os seus 85 anos, nunca foi mulher de mentir. Deduzo ainda que ela tenha ido sozinha fazer o meu registro, portando algum documento da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte. Uma espécie de notificação indicando o nascimento de um bebê do sexo feminino e de cor parda, filho da senhora tal, que seria ela. Tive esse registro de nascimento comigo durante muito tempo. Impressionava-me desde pequena essa cor parda. Como seria essa tonalidade que me pertencia? Eu não atinava qual seria. Sabia sim, sempre soube que sou negra. Quanto a ela ir sozinha, ou melhor, solitária para o cartório me registrar é uma dedução minha tirada de alguns fatos relativos à vida de meu pai. Aliás, de meu pai conheço pouco, pouquíssimo.


Em compensação, sei um pouco mais, daquele que considero como sendo meu pai. Dele sei o nome todo. Aníbal Vitorino e a profissão, pedreiro. Meu padrasto Aníbal, quando chegou a nossa casa, minha mãe cuidava de suas quatro filhas sozinha. Maria Inês Evaristo, Maria Angélica Evaristo, Maria da Conceição Evaristo e Maria de Lourdes Evaristo. Bons tempos, o de nós meninas. Minha mãe se constituiu, para mim, como algo mais doce de minha infância. O que mais me importava era a sua felicidade. Um misto de desespero, culpa e impotência me assaltava quando eu percebia os sofrimentos dela. Minha mãe chorava muito, hoje não. Tem uma velhice mais tranqüila. Meu padrasto completou 86 anos e vive ao lado dela. Depois das quatro meninas, minha mãe teve mais cinco meninos, meus irmãos, filhos de meu padrasto.


A ausência de um pai foi dirimida um pouco pela presença de meu padrasto, mas, sem dúvida alguma, o fato de eu ter tido duas mães suavizou muito o vazio paterno que me rondava. Aos sete anos, fui morar com a irmã mais velha de minha mãe, minha tia Maria Filomena da Silva. Ela era casada com Antonio João da Silva, o Tio Totó, viúvo de outros dois casamentos. Não tiveram filhos. Fui morar com eles, para que a minha mãe tivesse uma boca a menos para alimentar. Os dois passavam por menos necessidades, meu Tio Totó era pedreiro e minha Tia Lia, lavadeira como minha mãe. A oportunidade que eu tive para estudar surgiu muito da condição de vida, um pouco melhor, que eu desfrutava em casa dessa tia. As minhas irmãs enfrentavam dificuldades maiores.


Mãe lavadeira, tia lavadeira e ainda eficientes em todos os ramos dos serviços domésticos. Cozinhar, arrumar, passar, cuidar de crianças. Também eu, desde menina, aprendi a arte de cuidar do corpo do outro. Aos oito anos surgiu meu primeiro emprego doméstico e ao longo do tempo, outros foram acontecendo. Minha passagem pelas casas das patroas foi alternada por outras atividades, como levar crianças vizinhas para escola, já que eu levava os meus irmãos. O mesmo acontecia com os deveres de casa. Ao assistir os meninos de minha casa, eu estendia essa assistência às crianças da favela, o que me rendia também uns trocadinhos. Além disso, participava com minha mãe e tia, da lavagem, do apanhar e do entregar trouxas de roupas nas casas das patroas. Troquei também horas de tarefas domésticas nas casas de professores, por aulas particulares, por maior atenção na escola e principalmente pela possibilidade de ganhar livros, sempre didáticos, para mim, para minhas irmãs e irmãos.


Conseguir algum dinheiro com os restos dos ricos, lixos depositados nos latões sobre os muros ou nas calçadas, foi um modo de sobrevivência também experimentado por nós. E no final da década de 60, quando o diário de Maria Carolina de Jesus, lançado em 58, rapidamente ressurgiu, causando comoção aos leitores das classes abastadas brasileiras, nós nos sentíamos como personagens dos relatos da autora. Como Carolina Maria de Jesus, nas ruas da cidade de São Paulo, nós conhecíamos nas de Belo Horizonte, não só o cheiro e o sabor do lixo, mas ainda, o prazer do rendimento que as sobras dos ricos podiam nos ofertar. Carentes de coisas básicas para o dia a dia, os excedentes de uns, quase sempre construídos sobre a miséria de outros, voltavam humilhantemente para as nossas mãos. Restos.


Minha mãe leu e se identificou tanto com o Quarto de Despejo, de Carolina, que igualmente escreveu um diário, anos mais tarde. Guardo comigo esses escritos e tenho como provar em alguma pesquisa futura que a favelada do Canindé criou uma tradição literária. Outra favelada de Belo Horizonte seguiu o caminho de uma escrita inaugurada por Carolina e escreveu também sob a forma de diário, a miséria do cotidiano enfrentada por ela.


Em minha casa, todos nós estudamos em escolas públicas. Minha mãe sempre cuidadosa e desejosa que aprendêssemos a ler, nos matriculou no Jardim de Infância Bueno Brandão e no Grupo Escolar Barão do Rio Branco, duas escolas públicas que atendiam a uma clientela basicamente da classe alta belorizontina. Ela optou por nos colocar nessas escolas, distantes de nossa moradia, embora houvesse outras mais perto, porque já naquela época, as escolas situadas nas zonas vizinhas às comunidades pobres ofereciam um ensino diferenciado para pior.


Foi em uma ambiência escolar marcada por práticas pedagógicas excelentes para uns, e nefastas para outros, que descobri com mais intensidade a nossa condição de negros e pobres. Geograficamente, no Curso Primário experimentei um “apartaid” escolar. O prédio era uma construção de dois andares. No andar superior, ficavam as classes dos mais adiantados, dos que recebiam medalhas, dos que não repetiam a série, dos que cantavam e dançavam nas festas e das meninas que coroavam Nossa Senhora. O ensino religioso era obrigatório e ali como na igreja os anjos eram loiros, sempre. Passei o Curso Primário, quase todo, desejando ser aluna de umas das salas do andar superior. Minhas irmãs, irmãos, todos os alunos pobres e eu sempre ficávamos alocados nas classes do porão do prédio. Porões da escola, porões dos navios. Entretanto, ao ser muito bem aprovada da terceira para a quarta série, para minha alegria fui colocada em uma sala do andar superior. Situação que desgostou alguns professores. Eu, menina questionadora, teimosa em me apresentar nos eventos escolares, nos concursos de leitura e redação, nos coros infantis, tudo sem ser convidada, incomodava vários professores, mas também conquistava a simpatia de muitos outros. Além de minhas inquietações, de meus questionamentos e brigas com colegas, havia a constante vigilância e cobrança de minha mãe à escola. Ela ia às reuniões, mesmo odiando o silêncio que era imposto às mães pobres e quando tinha oportunidade de falar soltava o verbo.


Ao terminar o primário, em 1958, ganhei o meu primeiro prêmio de literatura, vencendo um concurso de redação que tinha o seguinte título: “Por que me orgulho de ser brasileira”. Quanto à beleza da redação, reinou o consenso dos professores, quanto ao prêmio, houve discordâncias. Minha passagem pela escola não tinha sido de uma aluna bem-comportada. Esperavam certa passividade de uma menina negra e pobre, assim como da sua família. E não éramos. Tínhamos uma consciência, mesmo que difusa, de nossa condição de pessoas negras, pobres e faveladas.

Durante toda a primeira infância, até ali por volta dos 10 ou 11 anos, morou conosco, em um quartinho à parte, um tio materno, Osvaldo Catarino Evaristo. Esse meu tio havia servido à pátria, lutado na Itália, na Segunda Guerra Mundial. Ao retornar ao Brasil, lhe foi oferecido um cargo de servente na Secretaria de Educação. Ao longo dos anos ele estudou, desenvolvendo seus dons de poeta, desenhista e artista plástico. E, mais do que isto, foi sempre um consciente questionador da situação do negro brasileiro. Repito sempre que a ele devo as minhas primeiras lições de negritude.


Ao terminar o Primário, fiz um Curso Ginasial cheio de interrupções e, a partir dos meus 17 anos, vivi intensamente discussões relativas à realidade social brasileira. Foi quando me inseri no movimento da JOC, (Juventude Operária Católica) que, como outros grupos católicos, promovia reflexões que visavam comprometer a Igreja com realidade brasileira. Entretanto, as questões étnicas só entrariam objetivamente em minhas discussões na década de 70, quando parti para o Rio de Janeiro.


Em 73, com ajuda de amigos, imigrei para o Rio de Janeiro, antigo Estado da Guanabara, depois de ter feito concurso naquele mesmo ano, para professora primária. Eu havia terminado o Curso Normal no Instituto de Educação de Minas Gerais, em 71. Tinha sido um período particularmente difícil para minha família e outras que estavam sofrendo com um plano de desfavelamento, que nos enviava para a periferia da cidade. Ao distanciarmos do centro de Belo Horizonte, não tínhamos nada, a não ser uma pobreza maior. Então, com um diploma de professora nas mãos e sem qualquer possibilidade de dar aulas em Belo Horizonte, parti de “mala e cuia” para o Rio de Janeiro. Entrar para a carreira de magistério, naquela época, dependia de ser indicado por alguém e as nossas relações com as famílias importantes de Belo Horizonte estavam marcadas pela nossa condição de subalternidade. Aliás, nesse sentido, gosto de dizer que a minha relação com a literatura começa nos fundos das cozinhas alheias. Minha mãe, tias e primas trabalharam em casas de grandes escritores mineiros ou nas casas de seus familiares. Digo mesmo que o destino da literatura me persegue...


Gosto, entretanto, de enfatizar, não nasci rodeada de livros, do tempo/espaço aprendi desde criança a colher palavras. A nossa casa vazia de bens materiais era habitada por palavras. Mamãe contava, minha tia contava, meu tio velhinho contava, os vizinhos e amigos contavam. Tudo era narrado, tudo era motivo de prosa-poesia, afirmo sempre. Entretanto, ainda asseguro que o mundo da leitura, o da palavra escrita, também me foi apresentado no interior de minha família que, embora constituída por pessoas em sua maioria apenas semi-alfabetizadas, todas eram seduzidas pela leitura e pela escrita. Tínhamos sempre em casa livros velhos, revistas, jornais. Lembro-me de nossos serões de leitura. Minha mãe ou minha tia a folhear conosco o material impresso e a traduzir as mensagens. E eu, na medida em que crescia e ganhava a competência da leitura, invertia os papeis, passei a ler para todos. Ali pelos meus onze anos, ganhei uma biblioteca inteira, a pública, quando uma das minhas tias se tornou servente daquela casa-tesouro, na Praça da Liberdade. Fiz dali a minha morada, o lugar onde eu buscava respostas para tudo. Escrevíamos também, bilhetes, anotações familiares, orações...


Na escola eu adorava redações do tipo: ”Onde passei as minhas férias”, ou ainda, “Um passeio à fazenda do meu tio”, como também, “A festa de meu aniversário”. A limitação do espaço físico e a pobreza econômica em que vivíamos eram resolvidas por meio de uma ficção inocente, único meio possível que me era apresentado para viver os meus sonhos. Se naquela época eu não tinha nenhuma possibilidade concreta de romper com o círculo de imposições que a vida nos oferecia, nada, porém freava os meus desejos. Eu menina, dona de uma tenaz esperança e de uma sabedoria precoce, reconhecia que a vida não poderia ser somente aquele pouco que nos era oferecido. Se muito de minha infância pobre, muito pobre, me doía, havia felicidades também incontáveis. As margaridas, as dálias e outras flores de nosso pequeno jardim. As frutas nos pés a matar a nossa fome. Os bolinhos de comida que mãe amassava com as mãos e enfiava em nossas bocas. As bonecas de capim ou bruxas de panos que nasciam com nome e história de suas mãos. O céu, as nuvens, as estrelas, sinais do infinito que minha e mãe e tia nos ensinaram a olhar e a sentir. E desse assuntar a vida, que foi ensinado por elas, ficou essa minha mania de buscar a alma, o íntimo das coisas. De recolher os restos, os pedaços, os vestígios, pois creio que a escrita, pelo menos para mim, é o pretensioso desejo de recuperar o vivido. A escrita pode eternizar o efêmero...


Nesse sentido, o que a minha memória escreveu em mim e sobre mim, mesmo que toda a paisagem externa tenha sofrido uma profunda transformação, as lembranças, mesmo que esfiapadas, sobrevivem. E na tentativa de recompor esse tecido esgarçado ao longo do tempo, escrevo. Escrevo sabendo que estou perseguindo uma sombra, um vestígio talvez. E como a memória é também vítima do esquecimento, invento, invento. Inventei, confundi Ponciá Vicêncio nos becos de minha memória. E dos becos de minha memória imaginei, criei. Aproveitei a imagem de uma velha Rita que eu havia conhecido um dia. E ainda desses mesmos becos, posso ter tirado de lá Ana e Davenga. Quem sabe Davenga não era primo de Negro Alírio? E por falar em becos da memória, voltei hoje de manhã à Rua Albita. Outra. Dali só reconheci a terra. Sim a terra, o pó, o barranco sobre o qual está edificado o “Mercado Cruzeiro”, no final da rua. Observei que a edificação do prédio conservou na base, parte do barranco sem cimentá-lo. Pude contemplar o solo, base da base da construção. Em um ponto qualquer daquele espaço, literalmente está enterrado o meu umbigo. Sem que ninguém percebesse alisei o chão e catei alguns fragmentos. Tive um desejo louco de tocar as minhas mãos com a boca. Era ali que a minha mãe desenhava o sol para chamá-lo à terra, quando tempo estava encharcado de chuva e as nossas latas vazias de alimento. Mas abaixo está a escultura de dois homens. Eles estão com os braços abertos, meio suspensos, com os gestos largos, insinuando que estão a caminhar em frente. Pensei: se eles derem uns poucos passos chegarão à torneira pública, em que apanhávamos água e as lavadeiras, como minha mãe e tia, desenvolviam seus trabalhos.


O pequeno monumento que foi erguido, não em memória aos antigos e primeiros da área, se chama “Otimismo”. Não sei por que pensei em nossos mortos, em todas as pessoas que viveram ali. E agradeci à vida o momento que estou vivendo agora. Impliquei com nome dado à escultura e fiquei curiosa. Qual seria o motivo daquela estátua? E porque o nome “Otimismo”? Outros nomes e sentidos me vieram à mente. Um deles insiste: resistência, resistência, resistência...


Escrevo. Deponho. Um depoimento em que as imagens se confundem, um eu-agora a puxar um eu-menina pelas ruas de Belo Horizonte. E como a escrita e o viver se con(fundem), sigo eu nessa escrevivência a lembrar de algo que escrevi recentemente:


“O olho do sol batia sobre as roupas estendidas no varal e mamãe sorria feliz. Gotículas de água aspergindo a minha vida-menina balançavam ao vento. Pequenas lágrimas dos lençóis. Pedrinhas azuis, pedaços de anil, fiapos de nuvens solitárias caídas do céu eram encontradas ao redor das bacias e tinas das lavagens de roupa. Tudo me causava uma comoção maior. A poesia me visitava e eu nem sabia...”


(fonte: Literafro - letras.ufmg.br/literafro/autoras/188-conceicao-evaristo)







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