Depoimento de Ruth Guimarães no seminário “Encontro de Gerações”, realizado em 2007, pelo Museu Afro Brasil, em São Paulo, em que a autora fala de seu trabalho e a questão do negro em nosso país:
"Minha formação é totalmente anônima, mergulhada na literatura brasileira, uma literatura sem escolha. Aliás, todos nós brasileiros estudamos literatura de uma maneira desorganizada; a gente lê o que quer, o que gosta, os professores dão um texto aqui, outro ali, nada sistematizado, com um sentido e programação. Quando nós chegamos ao fim, se é que a gente pode dizer ao fim, temos uma espécie de formação mista; assim como somos um povo mestiço, todo cheio de misturas de todo jeito, a nossa literatura também é toda feita de pedaços de textos, de arrumações aqui e ali. Não há nada que nos torne inteiriços, inteiros. Minha literatura é isso também. Eu conto a história da roça, de gente da roça, do caipira. Eu também sou caipira, modéstia à parte. Eu não me importei muito se havia uma tendência, ou se havia uma inclinação para contar a história do preto; como eu também sou misturada, o meu livro é misturado. Como eu sou brasileira, nesse sentido de brasileiro todo um pouco para lá, um pouco para cá, o meu livro também é assim, um pouco para lá, um pouco para cá.
Nós precisamos saber da raiz negra de onde viemos. A história negra está por fazer, a literatura negra está por fazer, a poesia está por fazer. Eu, depois de velha, resolvi pesquisar e, para isso, eu estou contando e escrevendo histórias, tentando fazer um fabulário brasileiro, não só com pesquisa entre negros, mas entre o povo, todo o nosso povo e, ocasionalmente, quando se faz o estudo aí a gente separa: isso daqui para lá é dos pretos, isto de lá para cá é de todo mundo. Muita gente já fez esses estudos e até descobriram uma coisa muito bonita, muito gratificante para a gente: que todas aquelas qualidades do povo brasileiro, aquele povo igual, alegre, que aceita, que aguenta os trancos, que passa por tudo quanto é ruindade neste mundo, essa qualidade boa, excelente, que faz de nós um povo único no mundo, nós devemos aos negros. Os negros é que são assim, aguentaram e continuam aguentando; não sei se são muito pacientes. Se for medir por mim, porque o homem é a medida do homem, se for medir por mim, essa qualidade de paciência nós não temos. Eu não tenho paciência. Não sou uma criatura paciente, mas sou uma criatura alegre, graças aos meus ascendentes negros. E agora, depois de muito velha, estou fazendo pesquisa e procurando o rastro do negro na nossa literatura de povo e na nossa alegria de contar histórias.
Água funda é um livro engraçado, livro da vida de todos os dias, é um livro de “acontecências”. Qualquer vida dá uma água funda, qualquer um de nós escreve um diário e conta aquelas coisas de todos os dias e vai sair uma água funda. Porque a verdade do livro, alegria, o que o livro tem de bom, de literário, é que ele é um livro de todos os dias, que acontece na vida de cada um. A gente procura o que tem na Água funda; nada, nem água. Claro, eu aprendi português em primeiro lugar, que é uma coisa que eu receito para os neo-escritores: que façam o favor de aprender português em primeiro lugar para depois escrever sua água funda. Estou sempre brigando por isso, aliás, eu sou professora, sou pela competência; se alguém vai escrever um livro, que leia os bons autores, que estude os bons autores, que assista aos bons filmes, que converse com gente que sabe falar, que viva a sua vida bastante e bem. Viva a vida completamente. Emocionalmente a pessoa tem que estar apta. "
Ruth de Souza e Ruth Guimarães
Ruth Guimarães e Guimarâes Rosa
https://institutoruthguimaraes.org.br/site/vida-e-obra/
Poema de Ruth Guimarães retirado do artigo "Ruth Guimarães: “não é fácil ser mulata”", por Ênio José da Costa Brito, Professor Titular PUCSP, Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião.
https://cecafropuc.wordpress.com/2016/03/02/ruth-guimaraes-nao-e-facil-ser-mulata/#_ftn1