O material reunido nesta página foi indicado por Valentina Cantori durante sua curadoria do projeto #tradução&poesia. Valentina nos presenteou com um passeio por todo o globo - passeio, enfatizamos, já que viagens podem ser turbulentas e tantas vezes a trabalho. Nesse percurso, passeamos como que íntimos desses novos velhos amigos.
Já que o tema é tradução e tivemos uma excelente tradutora nas funções curatoriais, aproveitamos pra pedir a Valentina que respondesse algumas perguntas sobre sua jornada nessa profissão que cria pontes tão decisivas para os amantes da literatura.
*Atualmente a batuta do projeto está com a poeta e tradutora Francesca Cricelli, e você pode conferir o material quinzenalmente aqui em nosso site!
Mulheres de milho
Leonardo Fróes
Leonardo Fróes é poeta, tradutor, ensaísta e ambientalista brasileiro, seu poema “Mulheres de milho” foi traduzido para o espanhol por Ayelén Medail, o francês trad. Caroline Micaelia e o italiano trad. Valentina Cantori.
As traduções foram apresentadas durante o evento Manual de Preciosidades, iniciativa organizada pela Capivara em homenagem aos oitenta anos de Fróes.
Traduzir — sobretudo quando se trata de poesia — parece uma empresa quase impossível, porque cada língua contém suas especificidades e opera dentro de uma dimensão própria. Traduzir os mistérios de uma língua, entender seu lado oculto e recriá-lo são, para a tradutora e o tradutor, os grandes desafios: alguma coisa se perde, mas certamente algo novo se encontra.
Essa prática não se limita a verter palavras e conceitos para outros idiomas: é necessário transportar (“traduzir” do latim trans ducere: “levar para o outro lado”) também as sensações físicas, lembrando que o entendimento da poesia passa antes de tudo pelo corpo. Ritmo e sonoridade são aspectos fundamentais, importantes tanto quanto o que se diz: forma é sempre conteúdo.
A tradução é prática complexa que combina os aspectos do rigor e da elasticidade, em que o lado analítico integra o intuito poético, respeitando a natureza do texto e fazendo-o viver em outra língua como obra de arte.
Valentina Cantori
Leitura realizada no evento Manual de Preciosidades
Mulheres de milho
Milhares de mulheres de milho
brotam do meu olho calado como espigas
fortes. No ar elas se endireitam
como folhudas criaturas carnosas
que ao vento se transmudam, de fêmeas,
em formosos penachos machos.
Acho graça na cruza; penso nisso
que é ser mulher a passo
de, sob a vertigem solar, virar confusa
hibridação. Abro-me. Brinco
de me dar. Rapto-me e opto-me
como se eu mesmo fosse me comer inteiro
enquanto as coisas simplesmente nascem.
Leonardo Fróes
Mujeres de maíz
Millares de mujeres de maíz
brotan de mi ojo callado como espigas
fuertes. En el aire ellas se enderechan
como hojudas criaturas carnosas
que al viento transmudan, de hembras,
en hermosos penachos machos.
Hallo gracia en la cruza; pienso en eso
que es ser mujer al paso
de, bajo el vértigo solar, volverse confusa
hibridación. Me abro. Juego
a darme. Me rapto y me opto
como si yo mismo me fuera a comer entero
mientras las cosas simplemente nacen.
Tradução de Ayelén Medail
Les dames de maïs
Des milliards de dames de maïs
poussent de mon œil muet comme des épis
forts. Dans l’air elles se mettent droites
comme de feuillues créatures charneuses
qui au vent se transmutent, de femelles,
en de formidables plumets mâles.
Ce croisement m’amuse ; je pense
à ce que c’est d’être femme sur le point
de devenir, sous le vertige solaire, une hybridation
confuse. Je m’ouvre. Je joue
à m’offrir. Je me kidnappe et m’opte
comme si j’étais prêt à me manger moi-même en entier
pendant que les choses simplement naissent.
Tradução de Caroline Micaelia
Dame di mais
Migliaia di dame di mais
spuntano dal mio occhio muto come spighe
forti. Nell’aria si raddrizzano
come frondose creature carnose
che al vento si trasformano da femmine
in formosi pennacchi maschi.
Mi è gradito l’incrocio; penso a questo
che è l’essere donna al punto
di, sotto alla vertigine solare, farsi confusa
ibridazione. Mi apro. Mi diverto
a darmi. Mi prendo e mi propendo
come se io stesso di me mi saziassi
mentre le cose semplicemente nascono.
Tradução de Valentina Cantori
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Não há Vida ou Morte
Mina Loy
Convidamos Maíra Mendes Galvão a ler um poema da modernista anglo-americana Mina Loy que ela mesma traduziu. Maíra é poeta e tradutora, agora doutoranda da Universidade de Massachusetts Amherst, e durante seu mestrado (Teorias da Tradução - USP) se dedicou à literatura de Mina Loy. Dessa autora Maíra traduziu uma seleção de poemas e textos — Escritura estilhaçada – manifesto feminista, notas sobre a existência e outros escritos — que saiu, no ano passado, pela editora 100/cabeças.
À pergunta sobre qual seria um desafio de tradução, Maíra respondeu: “o desafio de traduzir Mina Loy seria decifrar a estranheza de sua voz, mas minha estratégia é não decifrar, e sim sobrecifrar, isto é, levar suas construções ao grau máximo da polissemia, do som, do belo e do feio”.
There is no Life or Death
There is no Life or Death
Only activity
And in the absolute
Is no declivity.
There is no Love or Lust
Only propensity
Who would possess
Is a nonentity.
There is no First or Last
Only equality
And who would rule
Joins the majority.
There is no Space or Time
Only intensity,
And tame things
Have no immensity.
Mina Loy
Não há Vida ou Morte
Não há Vida ou Morte,
Só atividade
E no absoluto
Nenhuma declividade.
Não há Amor ou Libido
Só vontade
Quem possuiria
É uma nulidade.
Não há primeiro ou Último
Só igualdade
E quem reinaria
Pertence à maioria.
Não há Espaço ou Tempo
Só intensidade,
E coisas dóceis
Não têm imensidade.
Tradução de Maíra Mendes Galvão
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Bernart de Ventadorn
Tradução de uma “cansó” (“canção”, em português) provençal do século XII escrita por Bernart de Ventadorn, um dos trovadores mais importantes da literatura occitânica.
Nesta tradução, e em muitas outras de sua autoria, Augusto de Campos lida com os aspectos desafiadores da métrica e da rima: o poema original é composto por versos de sete sílabas e a rima mistura diferentes tipologias. O tradutor mantém as rimas adaptando-as para o português, traduzindo o poema com versos octossílabos.
Com este trabalho, Augusto de Campos diz muito a respeito da difícil tarefa do tradutor/da tradutora de poesia: encontrar o equilíbrio perfeito entre a forma e o conteúdo.
Lo tems vai e ven e vire
Per jorns, per mes e per ans,
Et eu, las! no.n sai que dire,
C'ades es us mos talans.
Ades es us e no.s muda,
C'una.n volh e.n ai volguda,
Don anc non aic jauzimen.
Pois ela no.n pert lo rire,
E me.n ven e dols e dans,
C'a tal joc m'a faih assire
Don ai lo peyor dos tans:
(C'aitals amors es perduda
Qu'es d'una part mantenguda),
Tro que fai acordamen.
Be deuri' esser blasmaire
De me mezeis a razo,
C'anc no nasquet cel de maire
Que tan servis en perdo;
E s'ela no m'en chastia,
Ades doblara.lh folia,
que: "fols no tem, tro que pren.”
Ja mains no serai chantaire
ni de l’escola n’Eblo,
que mos chantar no.m val gaire
ni mas voutas ni mei so;
Ni res qu'eu fassa ni dia,
No conosc que pros me sia,
Ni no.i vei melhuramen.
Si tot fatz de joi parvensa,
Mout ai dins lo cor irat.
Qui vid anc mais penedensa
Faire denan lo pechat?
On plus la prec, plus m'es dura;
Mas si 'n breu tems no.s melhura,
Vengut er al partimen.
Pero ben es qu'ela.m vensa
A tota sa volontat,
Que, s'el' a tort o bistensa,
Ades n'aura pietat;
Que so mostra l'escriptura:
Causa de bon'aventura
Val us sols jorns mais de cen.
Ja no.m partrai a ma vida,
Tan com sia saus ni sas,
Que pois l'arma n'es issida,
Balaya lonc tems lo gras;
E si tot no s'es cochada,
Ja per me no.n er blasmada,
Sol d'eus adenan s'emen.
Bernart de Ventadorn
O tempo vai e vem e vira
Por dias, por meses, por anos,
Mas o desejo que me tira
A vida e dá só desenganos
É sempre o mesmo, eu nunca mudo:
Só quero a ela, mais que tudo,
A ela que só me dá tormento.
Ela ainda ri como antes rira,
A mim vêm as dores e os danos,
Pois nesse jogo a que me atira
Só ganho enganos sobre enganos
(O Amor é um jogo perdido
Quando ele é só por um mantido)
Se não houver entendimento.
A ninguém mais posso culpar,
Senão a mim e a minha mente —
Só servir e nada ganhar,
É coisa própria de um demente,
E se ela a mim não me castiga
A loucura faz que eu prossiga:
Loucos não têm discernimento.
Eu nunca mais quero cantar
Com Eble ou qualquer outra gente,
Canções não podem me ajudar
Nem meu trovar, por mais dolente.
Tudo o que eu faça ou o que eu diga
É nada para que eu consiga
Dela qualquer abrandamento.
A alegria é só aparência,
Por dentro estou estraçalhado.
Onde se viu dar penitência
A alguém, antes de ter pecado?
Mais eu peço, mais ela é dura:
Ah, se ela não tiver brandura
Eu vou morrer, já não aguento.
Mas à cruel subserviência
Me submeto de bom grado,
Pois creio, na minha demência,
Que ainda serei recompensado;
É o que nos mostra a escritura:
Um dia apenas de ventura
Vale mais do que todo um cento.
Não a abandono — é a minha vida —
Enquanto esteja salvo e são.
Mesmo depois de revestida,
A espiga ao vento ainda é canção.
Por mais que seja desalmada
Jamais direi que ela é culpada,
Só lhe peço um pouco de alento.
Tradução de Augusto de Campos
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Edoardo Sanguineti
Um poema do italiano de Edoardo Sanguineti (1930-2010) traduzido por Maurício Santana Dias.
A tradução foi publicada em 2010 na revista Modo de Usar & Co, homenageando o autor falecido há pouco tempo.
Poeta que se aproxima das tendências de vanguarda, não sempre fácil de ler e traduzir, Sanguineti se utiliza de uma linguagem fortemente rítmica, incluindo também jogos sonoros, e que delineia as imagens de modo nítido.
O tradutor responde aos desafios sonoros encontrando também novas soluções aliterativas (“pisa o pedrisco” introduz, por exemplo, uma aliteração que não é presente em “pesta la ghiaia”), oferecendo ao público de língua portuguesa uma experiência de leitura que envolve intelecto e sentidos.
in te dormiva come un fibroma asciutto, come una magra tenia,
[un sogno;
ora pesta la ghiaia, ora scuote la propria ombra; ora stride,
deglutisce, orina, avendo atteso da sempre il gusto
della camomilla, la temperatura della lepre, il rumore della grandine,
la forma del tetto, il colore della paglia:
..........................senza rimedio il tempo
si è rivolto verso i suoi giorni; la terra offre immagini confuse;
saprà riconoscere la capra, il contadino, il cannone?
non queste forbici veramente sperava, non questa pera,
quando tremava in quel tuo sacco di membrane opache.
Edoardo Sanguineti
em ti dormia como um fibroma enxuto, como uma tênia magra,
[um sonho;
agora pisa o pedrisco, agora espanta a própria sombra; agora grita
deglute, urina, tendo sempre esperado o gosto
da camomila, a temperatura da lebre, o rumor do granizo,
a forma do teto, a cor da palha:
......................sem remédio o tempo
voltou-se para os seus dias; a terra oferece imagens confusas;
saberá reconhecer a cabra, o camponês, o canhão?
não estas tesouras realmente esperava, não esta pera,
quando tremia naquele teu saco de membranas opacas.
Tradução de Maurício Santana Dias
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Óssip Mandelstam
em tradução de Dirceu Villa
Óssip Mandelstam (1891-1938) foi poeta e prosador russo, que criticou abertamente o regime stalinista; seria acusado em diferentes ocasiões e, enfim, condenado a trabalhos forçados na Sibéria.
Publicamos aqui um de seus poemas mais importantes. A respeito da tradução, Dirceu Villa, poeta, ensaísta e tradutor, que há muitos anos leciona tradução poética no programa de formação da Casa Guilherme de Almeida, escreve: «as várias dificuldades começam com o fato elementar de eu não saber russo. Sempre apreciei particularmente esse poema, e certo dia me veio a ideia esdrúxula de traduzi-lo. Peguei uma cópia do manuscrito e cotejei com traduções para umas cinco línguas. Minha hipótese, a respeito de tradução poética, e a de que se traduz de poesia para poesia, e sentia que havia um modo de fazê-lo nesse caso específico. Outro motivo para o esforço é o de que considero o "Montanhês do Kremlin” um (ou “o”) poema exemplar de uma poesia política não-panfletária. Daí que a energia do poema tinha de ser mantida igualmente exemplar. Espero ter conseguido.»
Мы живём, под собою не чуя страны,
Наши речи за десять шагов не слышны,
А где хватит на полразговорца,
Там припомнят кремлёвского горца.
Его толстые пальцы, как черви, жирны,
И слова, как пудовые гири, верны,
Тараканьи смеются глазища
И сияют его голенища.
А вокруг него сброд тонкошеих вождей,
Он играет услугами полулюдей.
Кто свистит, кто мяучит, кто хнычет,
Он один лишь бабачит и тычет,
Как подкову, кует за указом указ:
Кому в пах, кому в лоб, кому в бровь, кому в глаз.
Что ни казнь у него — то малина,
И широкая грудь осетина.
Óssip Mandelstam
Nossas vidas, já sem o chão sob nós.
A dez passos não se ouve a nossa voz.
Mas onde quer que a fala encontre vez,
lá do Kremlin se mete o montanhês.
Vermes gordos, os dez dedos das mãos,
suas palavras, pesos que desabam,
gargalham sobre os lábios as baratas,
um brilho de navalha em suas botas.
Se cerca de capangas e covardes,
se serve dos servis com crueldade.
Um mia, um assobia, aquele geme,
mas só ele estronda, só ele espreme.
Forja decretos como ferraduras,
um na testa, um no olho, um na cintura.
Impõe penas como morde framboesas:
eis como o ossétio abraça suas presas.
Tradução de Dirceu Villa
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Paul Celan
traduzido por Simone Homem de Mello
Simone Homem de Mello é escritora — publicou livros de poemas e escreveu libretti para a ópera —, e tradutora literária, dedicando-se especialmente à poesia moderna e contemporânea de língua alemã. Coordena também o Centro de Estudos de Tradução Literária da Casa Guilherme de Almeida.
“Traduzir Paul Celan é, para mim, trabalho de uma vida inteira, uma espécie de tarefa para a vida. Eu o traduzo – de modo não intensivo, mas de qualquer forma contínuo – há pelo menos 20 anos e até agora quis publicar pouco: como se o resultado desse trabalho infinito só pudesse vir à luz no fim da vida. Talvez este seja um traduzir ritualístico. E vale apenas para Celan.”
(Traduzir Paul Celan, por Simone Homem de Mello - Texto apresentado durante o simpósio Celan übersetzen, realizado na Freie Universität Berlin por Friederike Günther e David Wachter, em cooperação com o Literarisches Colloquium Berlin, de 14 a 15 de junho de 2021)
WEGGEBEIZT vom
Strahlenwind deiner Sprache
das bunte Gerede des An-
erlebten — das hundert-
züngige Mein-
gedicht, das Genicht.
Aus-
gewirbelt
frei
der Weg durch den menschen-
gestaltigen Schnee,
den Büßerschnee, zu
den gastlichen
Gletscherstuben und -tischen.
Tief
in der Zeitenschrunde,
beim
Wabeneis
wartet, ein Atemkristall,
dein unumstößliches
Zeugnis.
Paul Celan
Brancorroído pelo irradi-
ar da tua língua,
o tinto rumor do vivido
em decalque – as cem-
línguas do poemeu, o sem-
poema.
Rede-
moinho afora,
livre
a trilha através da neve
em molde de homens,
neve de quem expia, rumo
aos convidativos
recintos e tábulas glaciares.
Fundo
na fenda dos tempos,
em pleno
gelo-alvéolo,
espera – um cristal-respiro –
tua irreversível
insígnia.
Tradução de Simone Homem de Mello
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