Broadcast me a joyful noise
Michael Stipe, “Bad day”
A quem diga que sou contra a tecnologia tento lembrar que a pena de ganso mergulhada em tinta-da-china era tecnologia; que eu mesmo jamais reclamei das minhas canetas (tenho gosto particular pelas Uni-Ball Mitsubishi); e que, da máquina de escrever Olivetti Lettera 82, cor mostarda, me queixava apenas, e na verdade, da minha própria incompetência como datilógrafo.
Nela, aliás, escreveria ainda adolescente os meus primeiros contos apenas com o dedo indicador: imitações do ambiente mental das histórias de Edgar Allan Poe redigidas em imitação do estilo de José Saramago, e que me fariam ganhar dois prêmios de escrita ainda no colégio, cujos troféus foram O Evangelho segundo Jesus Cristo, do mesmo Saramago, e a Obra em Prosa, de Fernando Pessoa, capa dura da coleção de autores portugueses da editora Nova Aguilar, então o livro mais bonito que possuía, compacto, sólido, em papel bíblia, com folha de rosto em duas cores e o retrato elusivo do autor por Vitoriano Braga.
E digo ainda que o livro como o conhecemos é um absoluto tecnológico, como a roda também é: são as formas mais desenvolvidas que nos movem, e o livro nos moveria ainda de outras maneiras, seja porque nele inscrevemos tudo o que experenciamos, seja porque, como o historiador Robert Darnton ressalta, há aspectos materiais da existência desse objeto que destilam uma época variadamente, desde o papel em que se imprimem até as letras das marginálias ─ e as personagens compondo as marginálias ─, entre outros aspectos que, indiferentes a quem ignore essa aventura, são essenciais para quem insista em cultivá-la.
Sou um estranho àquilo que chamam tecnologia, no entanto, quando o termo se aplica ao mundo digital: convencido por uma pessoa da minha mais cara intimidade, em 2002, que deveria ter um e-mail ou desapareceria, fui ajudado a inaugurar aquele que utilizo até hoje. Tive algum receio de desaparecer, é verdade: tratava-se, me explicaram, da mais elementar sobrevivência, algo que sequer eu poderia negligenciar. Mas desaparecer é algo muito relativo, como descobriria.
Manter-se diante dos olhos alheios, os do respeitável público, muitas vezes desrespeitaria nossa inteligência. Se as redes sociais ─ sobre as quais o atual presidente, Lula, sabiamente reprova o adjetivo “sociais”, propondo “digitais” em seu lugar ─ estão por toda parte e facilitam o contato a essa distância aparentemente segura, também reduzem a comunicação a um tipo de lembrete, que apela ao que temos de mais básico e imediato, também porque, com a velocidade das trocas econômicas que regem nossas relações, não há tempo para mais do que um vislumbre e uma reação direta.
Isso nos disciplina a reagir de modo vicário, distanciando nossa presença física já amortecida e precária quando ela importaria, e criando um permanente júri de fofocas amplificadas em notícia, de notícia em fato e daí em fato que não se pode ignorar sem se tomar partido extremo (o partido, naturalmente, que a maioria tome, ou consequências severas se seguirão).
A bisbilhotagem tornou-se, mesmo nos círculos de gente cujas qualidades críticas deveriam ser as mais afiadas, a moeda corrente do inane debate público atual: o mundo transformou-se na caricatura mais grosseira da mais mínima e fictícia cidade de interior, onde todos pensassem se conhecer o suficiente para se intrometer na vida de todos. E pensassem, também, que quaisquer palpites devessem ter força de lei, em especial se fossem parte do fluxo preponderante da opinião oscilatória dessa invenção de massa sem rosto, maquinal como o pesadelo de 1984, orwelliana em sua novilíngua, em seu ardor por reformar o passado e dominar o futuro, em sua inflexibilidade contra a diferença, ainda que superficialmente manifeste defendê-la.
Penso ─ e confesso em segredo a vocês ─ que a máquina seja totalitária. A máquina, hélas! somos nós mesmos, infelizmente amplificados, para muito além das nossas proporções humanas, em um monstro tentacular que nos traduz, do modo torto do interesse corporativo, em algozes neuróticos, insones e com perversidade voyeur. A mesma crítica que vale para a discussão sobre as armas de fogo (quando quem as defende diz que é a pessoa quem mata, não a arma, e quem as critica lembra que as armas de fogo não foram criadas para lançar perfume) vale aqui: deveríamos, talvez, nos perguntar se as tecnologias digitais teriam sido criadas com um objetivo que nos escape.
Arrisco a resposta provisória de que sim.
Assim como todas as falácias econômicas buscam apenas um novo meio de esconder a manutenção de privilégios, a tecnologia digital propagandeava um mundo no qual haveria mais tempo para aquilo que importa, porque abreviaria, com sua velocidade, tudo o que não importa. O que creio poder apontar como evidente falácia, uma vez que nunca antes corremos mais atrás do próprio rabo, com menos tempo para qualquer coisa que não seja o rabo (por vezes literalmente).
Dois dos criadores das redes chamadas sociais já admitiram ─ um deles jactando-se de sua esperteza gloriosa, o outro num mea culpa algo desesperado, como se já pudesse sentir o odor de enxofre ─ que as fizeram desenvolvendo um mecanismo pavloviano de estímulo e resposta, com o explícito objetivo de viciar em massa, o que o tecnólogo arrependido disse que rasgaria o tecido da sociedade como a conhecemos. Creio que tenha alguma razão, também porque é minha opinião que precisaríamos, como sociedade, repensar a confusão que voluntariamente se promove entre ciência e tecnologia, quando a última é só um partitivo da primeira, e a primeira está desaparecendo do nosso horizonte.
Em suas amargas substituições de foco, o privilégio concedido pela sociedade ocidental, desde o século XVIII, à indústria, à economia — formas auxiliares no passado —criou muitas ruínas sem que se pusesse nada de valor semelhante no lugar vazio de um conhecimento sem aplicação imediatamente prática. Ao contrário, reduzimos ciência em tecnologia, arte e ritual em entretenimento, filosofia em auto-ajuda. Fizemos da tecnologia uma religião, e dela, do entretenimento e da auto-ajuda, um negócio. O evangelho dessa nova religião ignorante e pseudo-científica é a onipresença das telecomunicações e a propaganda no espaço virtual: ambas as coisas são um método de controle da percepção e da imaginação (da informação, não menos) das multidões, que sofrem maciça sedação diária de suas capacidades inventivas, de suas capacidades críticas, de suas capacidades de produzir nova síntese proveitosa da experiência. E começa mesmo a desaparecer a verdadeira experiência.
O modo talvez menos ofensivo dessa estratégia se deu quando ouvi de pessoas amigas, gente escritora, que depois de entrar para as redes sociais passou a não ler tanto como lia antes, ou que os livros mais espessos pararam de ter verdadeiro interesse: haviam se acostumado a uma comunicação não apenas mais imediata, mas também com um modo mais direto e sucinto de escrever e receber respostas, e que isso tinha efeito contínuo, isto é, entrava e não saía mais.
A sintaxe mais complexa começa a perder seus efeitos mais engenhosos nas subordinações; o registro sensorial começa a se tornar mais raro, porque se passa cada vez mais tempo diante de uma tela, sem se notar o mundo à volta em seus detalhes mais específicos; por fim, tudo o que se lê acaba, na maior parte das vezes, redundando em pouco mais do que um slogan, e o vocabulário se enferruja nos usos mais comuns, aposentando um enorme número de palavras de fora do uso mais imediato, aposentando com isso noções inteiras de coisas no mundo que, sofrendo a extinção crescente de suas espécies vivas, sofre agora a extinção contínua das ideias na extinção de palavras e estilos.
Desconfiei, logo no começo, devo dizer, porque estranhava (e ainda estranho) as pessoas andando pela rua e falando dentro de seus celulares, esquecidas por completo do meio público em que estão; por vezes, os rostos se transfiguram e gritam ao telefone; por vezes, andam sem olhar o caminho, hipnotizadas, e tropeçam ou esbarram em tudo e todos. Sentam-se diante de quem amam e esquecem que partilham o mesmo espaço, ou se acham diante de paisagens paradisíacas e continuam com olhos e mentes sequestrados por suas mínimas máquinas hipnóticas. Pareciam-me (como ainda me parecem) sob o efeito de um transe narcótico, como se fossem aqueles personagens de desenho animado com os olhos rolando em espirais e com os braços estendidos adiante, para figurar uma força invisível que os atrai, inconscientes.
Aldous Huxley, inicialmente em 1949 em carta para George Orwell e depois em 1958, no ensaio “Brave New World Revisited”, especulava que o poder iria encontrar um modo de reduzir a necessidade de intervenção hiperviolenta do privilégio para coerção das multidões que quer dominar, e que esse modo seria fazer com que as pessoas hipnoticamente desejassem sua própria escravidão. Faria, aliás, com que sequer desconfiassem que são escravas. O mundo do consumo se atualizou (e se atualiza sempre e veloz como um programa de computador) no mundo virtual, que alheia já não mais a natureza ou o outro ser humano: alheia-nos de nós mesmos.
Esses três alheamentos foram previstos por Karl Marx em texto miúdo no distante ano do Senhor de 1844, “Trabalho alienado”, revelando dons oraculares que hoje arrepiam a espinha com horror talvez grego de sentirmo-nos como terá se sentido Édipo ao descobrir que, cumprindo seu livre-arbítrio, cumprira igualmente o funesto destino escrito. As vítimas da descoberta foram, não por acaso, seus próprios olhos.
E chegando a isso me despeço, pois a mera menção a Marx terá, estou certo, cutucado a indisposição coletiva que novamente arranca os cabelos com medo do fantasma vermelho, que é na verdade como a metafísica fora para Voltaire: dizia o malandro francês que a metafísica, para ele, era como um cego, num quarto escuro, procurando um gato preto que não estava lá.
Dirceu Villa
Dirceu Villa é poeta, tradutor e ensaísta, autor de 6 livros publicados de poesia, com doutorado em Literaturas de Língua Inglesa pela USP e pós-doutorado em Literatura Brasileira, também pela USP. Colaborou com periódicos estrangeiros e escreveu apresentações para obras de diversos autores contemporâneos. Foi convidado para o PoesieFestival de Berlim em 2012 e em 2015 foi escolhido para residência literária em Norwich e Londres, promovida pelo British Council, a FLIP e o Writers’ Centre Norwich. Sua poesia já foi traduzida para o espanhol, o inglês, o francês, o italiano e o alemão, publicada em antologias e revistas especializadas. Há sete anos é professor da Oficina de Tradução Poética da Casa Guilherme de Almeida (Centro de Estudos de Tradução Literária), e professor do Laboratório de Poemas há três anos n' A Capivara.
*Para conhecer mais detalhes sobre o Laboratório de Poemas, acesse: www.acapivaracultural.com.br/laboratoriodepoemas
Comments