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Brigitte Fontaine, a Rita Lee francesa - Tradução&poesia

Tradução de Ana Cláudia Romano Ribeiro


Minha história com Brigitte Fontaine começou com o cd Genre humain, em 1995, quando eu morava em Paris, mas a história dela é bem mais antiga e sua discografia, imensa em todos os sentidos. Brigitte Fontaine é uma espécie de Rita Lee francesa, leitora de Rimbaud, e eu não sabia que ela tinha publicado livros de poesia (e também romances, contos, dramaturgia, etc). Descobri isso no final de 2023, quando a Embaixada da França me enviou para Paris como tradutora sênior para participar de um programa formativo chamado Focus Traduction. Nessa ocasião, pude dar uma escapadinha para visitar minha livraria-sebo preferida e lá uma lombada me viu e gritou: Brigiiitte! Olha a sua Brigitte aqui! Era a lombada de Paroles d’évangile com uma abelha na capa (pintura do Enki Bilal). A Brigitte letrista e a Brigitte poeta se confundem, assim como a fronteira entre letra de música e poema tantas vezes não existe e nem faz sentido, mas o que me interessa aqui não é discutir isso, quero mostrar duas coisas dela que eu não conhecia, começando por um poema desse livro que me encontrou e que me fez voltar a... (quantas vezes repeti esse nome?) Brigitte, aquela voz, a dicção, o humor, a ironia, o absurdo, o alho frito.





Alguns de seus livros:

Fatrasie (Le Tripode, 2023)

La vieille prodige (Le Tripode, 2021)

Vers luisants (Le Tripode, 2021)

Paroles d’évangile (Le Tripode, 2019)

Chute et ravissement [carta a Rimbaud] (Actes Sud, 2017)

L’onyx rose (Flammarion, 2017)

Les hommes préfèrent les hommes (Flammarion, 2014)

Les charmeurs de pierres (Flammarion, 2012)



Explication de texte


A Explication de texte é um crime contra a humanidade.

Todos os explicadores e as explicadoras de textos deveriam ser executados, castrados, defenestrados, despedaçados e suicidados pelas costas.


As criancinhas submetidas às explications de texte tornam-se enfastiadas, aculturadas, equivocadas, emasculadas ou mutiladas e ovariohisterectomisadas - para sempre.


Os exegetas, apesar desse nome belo como uma Antiguidade, os exegetas são malvados e velhacos. Digo isso correndo risco de redundância. Afinal, amo o risco, sobrevivo por causa do risco, renasço por causa do risco. Renasço assim, do nada. E por que não renasceria? A gente renasce e re-morre, é isso que a vida quer. E o que a vida quer, Deus quer.


Então, nossa Cachinhos de Ouro, como eu ia dizendo, se apaixonou por Deus, um dia, de repente. Mudou o nome para Paul Claudel e mandou sua irmã para o hospício, onde ela morreu de fome.


Ninguém é perfeito.


Então Cachinhos de Ouro, preocupada em ser mais que perfeita, renasceu, porque ela também estava morta, de vergonha porém tarde demais, renasceu sob a forma de um buquê de narcisos que clareou o mundo por um instante.


Isso, lógico, para dizer que as explicações de textos e as exegeses são e permanecem

crimes de guerra e paz.

Paz sobre a terra aos homens de boa vontade. As mulheres? Ah, vocês sabem como é...

Não, vocês não sabem. Eu também não.


Paz sobre a terra para as bananas da terra.


Boa sorte para os exegetas que sem delongas abandonaram este caso ou apunhalaram-se no cú.

Cú-curuto, con-cordância, acorde perfeito.


Chega de falar de mim.


Tradução de Ana Cláudia Romano Ribeiro




Explication de texte


L’Explication de texte est un crime contre l’humanité.

Les expliqueurs et les expliqueuses de textes devraient tous être passés par les armes, châtrés, défenestrés, roués vifs et suicidés dans le dos.


Les petits enfants qui subissent les explications de textes sont à tout jamais dégoûtés, acculturés, dévoyés, émasculés ou excisées et ovarectomisées.


Les exégètes, malgré leur nom beau comme l’Antique, les exégètes sont des pendards et des maroufles. Je le dis au risque de me répéter. Car j’aime le risque, je survis grâce au risque, je renais grâce au risque. Je renais pour rien, comme ça. Pourquoi pas? On renaît et on re-meurt, c’est la vie qui veut ça. Et ce que la vie veut, Dieu le veut.


Alors, notre Boucle d’Or disais-je, tomba amoureuse de Dieu, un jour à l’improviste.

Elle prit le nom de Paul Claudel et envoya sa soeur à l’asile, où elle mourut de faim.


Personne n’est parfait.


Alors Boucle d’Or, soucieuse d’être plus que parfaite, renaquit, car elle était morte aussi, de honte mais trop tard, renaquit donc sous forme d’un bouquet de narcisses qui éclaira le monde un instant.


Ceci bien sûr pour dire que les explications de textes et les exégèses sont et demeurent des crimes de guerre et paix.

Paix sur la terre aux hommes de bonne volonté. Les femmes? Oh, vous savez... Non, vous ne savez pas. Moi non plus.


Paix sur la terre aux pommes de terre.


Bon courage aux exégètes qui ont immédiatement lâché cette affaire ou se sont poignardé le cul.


Cul-de-sac, d’accord, accord parfait.


Mais assez parlé de moi.


Brigitte Fontaine, Paroles d’évangile (Le Tripode, 2019)



Hoje o dia está bonito


Hoje o dia está bonito

estamos torrando

tem cheiro de arenque

tem cheiro de desgraça

porque

vai aumentar de novo

seremos

escamas de crocodilos

no deserto

figos secos

quase carbonizados

batatas grudadas

na panela

vamos sonhar

com geada e com neve

corvos pretos no branco

com vaca-preta

Os mosquitos

vão se abastecer de malária

as desgraças

vão crescer por toda parte

e não dá pra rir

Eles chamam isso de dia bonito


Tradução de Ana Cláudia Romano Ribeiro



Il fait beau aujourd’hui


Il fait beau aujourd’hui

on grille

ça sent le hareng

ça sent le malheur

car

ça va encore augmenter

on va être

des arêtes de crocodiles

dans le désert

des figues sèches

presque carbonisées

des patates attachées

dans la casserole

on va rêver

de givre et de neige

des corbeaux noirs sur blanc

de glace au coca

Les moustiques

vont se charger de malaria

les malheurs

vont grandir partout

et ça fait pas marrer

Ils appellent ça le beau temps


Brigitte Fontaine, Fatrasie (Le Tripode, 2023)







Ana Cláudia Romano Ribeiro desenvolve projetos nos campos da tradução, das artes visuais, da escrita e da performance. Suas áreas de formação são Letras, Etnomusicologia, Teoria e História Literária e Estudos Clássicos. Atualmente é professora de literaturas de língua francesa no Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Em 2022, fez a curadoria do #poesiaqueer para A Capivara Cultural, onde coordena o NaLetra, com Deise Abreu Pacheco. Publicou O fragmento 31 de Safo e outros poemas (Urutau, 2023), A casa das pessoas (poemas, 7Letras, 2023), A vida de Deise, com Deise Abreu Pacheco (tirinhas, Hucitec, 2022), Sol talvez seja uma palavra (com o coletivo Anáguas, 7Letras, 2022) e Ave, semente (Editacuja, 2021). Duas de suas publicações mais recentes em periódico online são uma resenha desenhada para o romance desenhado Autoportrait de Paris avec chat, de Dany Laferrière (Criação & Crítica, 32, 2022), e “Figurações de pessoa-planta: traduzindo o poema Les pur-sang, de Aimé Césaire, à luz dos ensaios de Suzanne Césaire" (Translatio, 25, 2023). Traduziu, anotou e organizou a Utopia (1516) de Thomas More (Editora da UFPR), no prelo.







#tradução&poesia








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