por Carolina Ferreira - PRETA PALAVRA
Ilustração em homenagem ao aniversário de 198 anos de autora, por Wal Paixão
Maria Firmina dos Reis é primeira autora negra de um romance de expressão romântica (MIRANDA, 2019). Negra e maranhense, destaca-se não só por sua escrita inovadora em prosa e poesia, mas também como educadora e abolicionista. Somente a partir de 1970, Maria Firmina é "descoberta" pelo bibliógrafo Horácio de Almeida, e sua obra passa então a ser republicada. Inicialmente publicava seus textos em jornais mediante um pseudônimo de “Uma Maranhense”. Apesar da Carta de Pero Vaz de Caminha ser considerada o primeiro texto literário brasileiro, hoje sabemos que a produção da autora faz parte dos textos fundacionais, além de ser uma das precursoras no discurso abolicionista em sua obra, antecedendo inclusive Castro Alves.
hooks, no texto “Heranças estéticas: a história feita à mão” vai traçar que uma das formas de nos opormos ao apagamento das mulheres negras é a de evocar seus nomes. Em Pertecimento: uma cultura de lugar, a autora retorna a sua cidade de origem e entre outras coisas vai refletir sobre a partir de qual lugar sua teoria e prática se desdobram e de como o racismo e sexismo estão nas raízes de sentimentos de não pertencimento. Colocando assim, a perspectiva ancestral como uma forma de gerar identificação e caminhos possíveis de cura e cuidado. Por meio dessas elaborações, fica evidente para nós que o sentimento de pertencimento é uma forma de autodeterminação, que é possível a partir do momento em que é identificado e nomeado as violências e opressões causadas pelo que hooks nomeia como “patriarcado supremacista branco capitalista imperialista”.
Ao evocar sua avó e tantas outras mulheres que teciam colchas de retalho, a partir de roupas já surradas e que além de se tornar um recorte de memórias era também uma forma de proteger o corpo as vestindo. Ela nos leva a pensar sobre a construção de uma estética opositora, como forma de imaginação criativa. Algo no sentido de: como a partir da identificação dos sistemas de opressão que nos cercam, podemos transgredi-los propondo outras formas de lugar, ser, existir e reexistir no mundo? Em um gesto que se dá dentro de uma noção de comunidades — de cuidado e de amor. Tendo o passado como matéria prima, inserido em uma outra lógica temporal — aqui podemos evocar o tempo espiralar trabalhado por Leda Maria Martins —, em que criatividade, estético e o processo imaginativo se desdobram de forma opositora.
Pensar a obra de Maria Firmina dos Reis a partir dessas elaborações nos ajudam a ler, a importância da enunciação das personagens negras no romance Úrsula e no conto A Escrava. Em que ela não repete a construção de personagens que reduzem os corpos negros a violência e a um estado de impotência traumática. E sim, que cria uma cultura de lugar para esses sujeitos em que há a possibilidade de se ter uma sensação de pertencimento. Túlio, ao dialogar com os seus mais velhos, Preta Susana e Antero, tem a possibilidade de repensar suas próprias noções de pertencimento ao alcançar memórias anteriores ao período escravista:
— Tu?! — exclamou ela procurando ler-lhe no fundo do coração os sentimentos que o animavam. — Tu, não leva saudades algumas. Túlio; se as levasses, quem te obrigaria a deixar-nos?
— A gratidão — respondeu ele com presteza.
[...]
— Túlio — continuou —, não sabes quanto sofro quando recordo-me de que a nossa querida menina vai tão breve ficar só no mundo! Só, Túlio! Quem a acompanhará? Quem poderá consolá-la! Eu? Não. Pouco poderei demorar-me neste mundo. Meu filho, acho bom que não te vás. Que te adianta trocares um cativeiro por outro! E sabes tu se aí o encontrarás melhor? Olha chamar-te-ão, talvez, ingrato, e eu não terei uma palavra para defender-te. (REIS, 2021 p. 132)
Após esse diálogo, Preta Susana vai narrar a travessia do atlântico e descrever uma outra noção de liberdade que existiu antes do sequestro e dos horrores da escravidão. Em A Escrava essa noção de lugar e pertencimento é também elaborada a partir da noção da fuga, seja da fuga literal por parte da escravizada, seja pela sua morte mais ao fim da narrativa:
Gabriel entrava nesse momento. Basta, minha mãe, disse-lhe, vendo em seus rosto debuxados todos os sintomas de uma morte próxima.
— Deixa concluir, meu filho, antes que a morte me cerre os lábios para sempre...deixa-me morrer amaldiçoando os meus carrascos.
[...]
Aqui a mísera calou-se; eu respeitei o seu silêncio que era dolorosa, quando lhe ouvi um arranco profundo, e magoado.
Curvei-me sobre ela. Gabriel ajoelhou-se, e juntos exclamamos:
— Morta! (REIS, 2021 p. 26)
Pensar o sentido da morte fora dos padrões cristãos nessa narrativa é um gesto que se faz necessário, a escravizada que enlouquece em função da separação e da ausência de seus filhos tem a chance de enunciar sobre a sua própria dor — tendo em vista que até o início do conto ela é tratada não só como menos humana por ser negra e escravizada, mas também por se “fazer de douda”. A morte aqui, por uma perspectiva das filosofias e cosmovisões africanas não é uma aniquilação, mas sim uma mudança de estado uma existência que continua em outro plano, é a passagem que a torna uma ancestral.
Dionne Brand, poeta natural de Trinidad, que vive no Canadá desde os anos 70 propõe uma outra construção de mapas que devem ser construídos diante da impossibilidade de um retorno em função do sequestro, da travessia do Atlântico e da criação das diásporas africanas ao redor do mundo. Por meio da intuição, de relatos orais da família, da memória pessoal e de viagens, de “fios de sonho” e artigos de jornal. Com uma poética singular, Dionne nos ajuda a pensar em uma possível estética da diáspora africana, em que o deslocamento, a fuga e o trânsito a constituem.
A leitura proposta aqui, se dá desde dentro das camadas subterrâneas da obra de Maria Firmina dos Reis. Guiadas principalmente pelo lugar e pertencimento tecidas por bell hooks e Dionne Brand, mas também alguma forma a partir da ressonância do trabalho de autores como Glissant, Denetém Touam Boná, Denise Ferreira da Silva, Fred Motem e tantos intelectuais negros e negras que tem construído seus legados em rotas de fuga subterrâneas. Procurarmos, inspiradas em Maria Firmina dos Reis, criar gramáticas fora do pensamento hegemônico do cânone ocidental, para ler e analisar sua produção escrita.
Quando Dionne Brand, se propõe a desenhar os mapas para a porta do não retorno, ela está pensando também em traçar uma possível estética da diáspora africana — e apesar de estar no campo do impossível e do indizível, esse gesto tem um retorno, em um movimento espiralar para a ancestralidade. bell hooks, a seu modo, também procura refletir sobre as heranças estéticas que se movem contra o apagamento do sujeito. Com a ideia de uma estética opositora, que para ela está nas memórias da infância no trânsito da zona rural para a cidade de uma cidade do Sul de um Estados Unidos segregado.
Ler Maria Firmina dos Reis, por meio de suas rotas de fuga, subterrâneas a leitura hegemônica e superficial, amplia as possibilidades de diálogos e encruzas que estão para além das noções cartesianas de tempo e espaço — sempre em movimento, um constante trânsito (indisciplinar e negro).
Carolina Ferreira é mestra em literatura e crítica literária da PUC-SP. Gerente de projetos em diversidade e inclusão e autora de conteúdo didático. Participou da antologia "Carolinas: a nova geração de escritoras negras", organizada pela FLUP (Bazar do Tempo, 2020). É pesquisadora-fundadora do Grupo de Pesquisa de Literaturas e Ancestralidades Negras – GPLAN da PUC-SP. E também curadora responsável pelo circuito da livraria Gato sem rabo. Tem se dedicado a investigar poéticas negras na literatura escrita por mulheres e na arte contemporânea e, mais recentemente, literaturas negras de infância e juventude.
O projeto PRETAPALAVRA é uma iniciativa d'A Capi em parceria com Maria Carolina Casati (@encruzilinhas), para divulgar e amplificar as vozes de escritoras negras.
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