Texto e tradução de Ana Cláudia Romano Ribeiro
Manuel pour changer de corps (Manual para mudar de corpo), de Noah Truong, um dos cinco finalistas na categoria poesia do Prix de la Vocation et de la Poésie (Prêmio da Vocação e da Poesia) de 2022, foi lançado em janeiro de 2024 na coleção Sorcières (Bruxas) das edições Cambourakis Paris, França). Em seu instagram, o autor conta que escreveu os poemas desse livro durante os dois primeiros anos de sua transição: “Eles falam do tempo, da solidão, da infância, de amor queer. De linguagem também.”
Noah Truong estudou Teoria Política na École Doctorale de Science-Po, fez Filosofia na Sorbonne - Paris IV e um master de Criação Literária na Universidade Paris 8. Elu relata, em seu site, ter como referências importantes a filosofia materialista de Monique Wittig e dos estudos culturais pós-coloniais, “que fazem do texto um lugar de intervenção sobre as representações culturais majoritárias (Homi K. Bhabha). Interessa-se pelo que o texto pode ‘fazer’ com o gênero e com os corpos generificados.” Noah Truong também é artista plástico e participou do festival Boitaqueer em novembro de 2023 com um trabalho chamado Boys:):(Toys.
A coleção Sorcières, explica uma nota colocada no início no livro, critica a ideia do masculino universal e abre um “espaço de experimentação da língua; autoreas (auteurices) e tradutoreas (traducteurices) usam as regras de escrita inclusiva que preferem”, além de poderem não recorrer à escrita inclusiva. Nos poemas de Noah Truong, continua a nota, encontram-se “e” em itálico (“mes amantes”, sendo esse “e” uma marca do feminino em língua francesa enxertado na palavra masculina amants; o possessivo mes tem a mesma forma no feminino e no masculino), encontram-se duplos (doublets) como “celles et ceux” (aquelas e aqueles) ou formas neutras, como “celleux” (aquelus), “iel” (elu/ile), “vendereuses” (vendedoraes).
A tradutora agradece às edições Cambourakis na pessoa de Charlotte Groult, que gentilmente autorizou a publicação de três poemas do Manuel pour changer de corps neste blog.
deadname
il voulait pouvoir visiter les territoires de sa propre
existence comme un étranger
et mourir à une étape de sa propre vie.
il voulait disparaître comme le font les hommes japonais
terrorisés par les exigences de la société dans laquelle ils
sont nés.
il voulait se désengager de son précédent nom, de son
précédent visage.
dire:
ceci n’est plus moi
demandez à quelqu’un d’autre
donnez-moi la compassion qu’on donne aux morts
une ardoise vierge.
il voulait réécrire sa légende
faire hommage à l’être avant lui
et l’oublier.
deadname
ele queria poder visitar os territórios de sua própria
existência como um estrangeiro
e morrer em um dado momento de sua própria vida.
ele queria desaparecer como os homens japoneses
aterrorizados pelas exigências da sociedade onde eles
nasceram.
ele queria se desengajar de seu nome precedente, de seu
rosto precedente.
dizer:
isto não é mais eu
pergunte para outra pessoa
dê-me a mim a compaixão que se dá aos mortos
uma ardósia virgem.
ele queria reescrever sua lenda
homenagear o ser antes dele
e esquecê-lo.
Battle Royale
être trans c’est Battle Royale.
on te jette dans l’arène.
tu mets un temps fou à comprendre qui est ton vrai
ennemi
et arrêter de te zigouiller
et zigouiller les autres.
c’est pas vraiment que tu défonces tout le cis-tème
en deux minutes comme l’île maudite du film
ni que tout le monde est d’accord avec toi à la fin.
l’essentiel c’est la poignée de main d’après
le moment où les héros se disent au revoir
avec leur révolution, en cavale.
la poignée de main dit
ou moi j’entends:
à la vie à la mort
partout où tu seras
mon adelphe
partout
tu me trouveras aussi.
Battle Royale
ser trans é Battle Royale.
te jogam na arena.
você leva um tempão para entender quem é teu verdadeiro
inimigo
e parar de te fusilar
e fusilar os outros.
não é que você esmaga todo o cis-tema
em dois minutos como a ilha maldita do filme
nem que todo mundo concorda com você no final.
o essencial é o aperto de mãos que vem depois
o momento em que os heróis se despedem
com sua revolução, no galope.
o aperto de mãos diz
ou eu ouço:
pro resto da vida até a morte
onde quer que você esteja
meu adelfo
onde quer que seja
você me encontrará também.
sans ça
quand sans repos rallume la lampe
quand sans refuge tire ton mégot
quand sans gaieté allonge le pas
quand épuisée trouve une aiguille
trouve de l’encre trouve un appui
dessine à l’encre noire sur ton poignet
une chambre un lit
une couverture un oreiller
fais des rideaux avec ta manche
et pose ta tête dessus.
sem isso
quando sem repouso acende a lâmpada
quando sem refúgio fuma a tua ponta
quando sem alegria alonga o passo
quando cansade acha uma agulha
acha tinta acha um apoio
desenha com tinta preta no teu pulso
um quarto uma cama
uma coberta um travesseiro
faz cortinas com tua manga
e coloca tua cabeça em cima.
Instagram de Noah Truong: https://www.instagram.com/noahdaidai/?hl=pt
Insta da editora: https://www.instagram.com/editions_cambourakis/
Mais poemas com temática trans no blog da Capivara, com curadoria de Ana Cláudia
Romano Ribeiro:
Cinco poemas de Giovanna Cristina Vivinetto traduzidos por Francesca Cricelli
[bilíngues, em italiano e em português]
poesiaqueer-por-ana-cl%C3%A1udia-romano-ribeiro
Cinco poemas trans (de Joshua Jennifer Espinoza, Oliver Baez Bendorf, Kayleb Rae
Candrilli, Mill Oberman e Raquel Salas Rivera) traduzidos por Vinicius Shindy
Takahashi Freres [bilíngues, em inglês e em português]
cl%C3%A1udia-romano-ribeiro
Ana Cláudia Romano Ribeiro desenvolve projetos nos campos da tradução, das artes visuais, da escrita e da performance. Suas áreas de formação são Letras, Etnomusicologia, Teoria e História Literária e Estudos Clássicos. Atualmente é professora de literaturas de língua francesa no Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Em 2022, fez a curadoria do #poesiaqueer para A Capivara Cultural, onde coordena o NaLetra, com Deise Abreu Pacheco. Publicou O fragmento 31 de Safo e outros poemas (Urutau, 2023), A casa das pessoas (poemas, 7Letras, 2023), A vida de Deise, com Deise Abreu Pacheco (tirinhas, Hucitec, 2022), Sol talvez seja uma palavra (com o coletivo Anáguas, 7Letras, 2022) e Ave, semente (Editacuja, 2021). Duas de suas publicações mais recentes em periódico online são uma resenha desenhada para o romance desenhado Autoportrait de Paris avec chat, de Dany Laferrière (Criação & Crítica, 32, 2022), e “Figurações de pessoa-planta: traduzindo o poema Les pur-sang, de Aimé Césaire, à luz dos ensaios de Suzanne Césaire" (Translatio, 25, 2023). Traduziu, anotou e organizou a Utopia (1516) de Thomas More (Editora da UFPR), no prelo.