Carolina Maria de Jesus (1960) - UFRJ/Divulgação
Em 1960, a moradora da favela do Canindé – a primeira grande favela de São Paulo – Carolina Maria de Jesus publica seus diários em formato de livro. Quarto de Despejo – diário de uma favelada é a forma que essa migrante de Sacramento/ MG encontra para sobreviver. E não, aqui não estou me valendo de uma figura de linguagem. Escrever para Carolina era, antes de tudo, uma fuga, uma possibilidade de não enlouquecer. Carolina escrevia para não morrer.
A autora retrata seu cotidiano na cidade que, em sua descrição, é a nossa grande casa. As áreas nobres e regiões centrais são a sala e, as favelas e localidades mais afastadas, o quarto de despejo. Pois é... como ir contra essas duas afirmações? A cidade é mesmo – ou, pelo menos, deveria ser – a “nossa casa”. Porém, há, de fato, cômodos completamente esquecidos pelos nossos senhorios; são muitos os quartos-bairros nos quais pessoas, vidas, cidadãos e oportunidades são despejados para que as salas-elite permaneçam vistosas.
Trechos do livro Quarto de Despejo, 1960
Carolina Maria de Jesus
07 de outubro
Morreu um menino aqui na favela. Tinha dois meses. Se vivesse ia passar fome.
28 de maio
A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.
“Para nós, Carolina Maria de Jesus não é apenas assunto de uma reportagem da Paris, mas uma [...] percursora da literatura de autoria negra feminina na América do Sul [...]”, dizem Vinícius Carneiro e Maria-Clara Machado no posfácio de Cartas para uma negra.
Para mim, Carolina Maria é ainda mais. Para além da semelhança de nossos nomes (e do fato de eu ter o mesmo nome de sua mãe), Carolina é significância ancestral, histórica.
Quarto de Despejo traz, também, uma profunda crítica do Brasil nas décadas de 1950-1960. Nascida em Sacramento/ MG em 14 de março de 1914, Carolina faleceu em SP, em 13 de fevereiro de 1977. Mãe solo, catadora de papel, a autora nunca teve sua condição de escritora reconhecida. Apenas em 25 de fevereiro de 2021 recebeu o título Honoris Causa pela UFRJ.
Carolina, por meio da sua escrita da precariedade, reivindica a fome como categoria de análise; pois, ainda que essa já tenha sido tema de outras obras, aqui, a subalterna fala. De fato, até em termos formais, o texto de Carolina é inovador: os romances anteriores (anos de 1930) eram ficção; a literatura era representação. Carolina fala das próprias experiências, seus diários são, também, outra categoria: é escrevivência pura!
Quarto de despejo - Diário de uma favelada vendeu cerca de 100 mil cópias em um ano; 10 mil em três dias, equiparando-se a Jorge Amado e Paulo Coelho. Foi talvez o mais traduzido dos livros brasileiros. Carolina Maria de Jesus deixou perto de 140 cadernos, folhas avulsas, pedaços de jornal e papelão anotados. Em breve será possível ter acesso a outras obras da autora, uma vez que sua obra está sendo publicada e há uma exposição em sua homenagem em cartaz em SP*.
Viva, Carolina!
Maria Carolina Casati
curadora da #pretapalavra
*Link para mais informações sobre a exposição CAROLINA MARIA DE JESUS: Um Brasil para os brasileiros:
https://ims.com.br/exposicao/carolina-maria-de-jesus-ims-paulista/
uma série de cursos, oficinas, aulas abertas e produção de conteúdo digital, que visa apresentar textos, poemas e pensamentos de mulheres negras, divulgando a "escrevivência" em seu sentido mais ancestral.
Conheça outras ações da inicitativa #PRETAPALAVA:
https://www.acapivaracultural.com.br/pretapalavra
Maria Carolina Casati é professora e escritora. Leitora voraz, apaixonada pela palavra, se dedica a pesquisas usando a metodologia da história oral. É idealizadora do @encruzilinhas, um projeto de leitura e debate de textos sobre negritude, gênero, feminismos e militância. Cursa o doutorado na EACH-USP, do Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política. Seu projeto, por meio da história oral de vida, analisa narrativas de mulheres negras casadas com italianos.
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