Textículos de Mary foi uma banda que ficou entre o glam e o punk, surgida (e essa palavra é boa) no final dos anos 90 em Recife. Diz a lenda registrada em cima do CD do primeiro álbum (e único que virou produto) que a travesti Mary, cansada da vida, num dia quente na ilha do Recife Antigo, cortou o saco fora e o jogou num banheiro público. Como três vênus trash, sugiram Chupeta, Lollypop e Silene Lapadinha – Fábio Mafra, Henrique Durand e Tony suas encarnações terrestres.
As três bixas superpoderosas (na narrativa as personagens queriam virar desenho de sucesso na Cartoon Network) encontraram músicos excelentes da cena recifense para formar a Banda d’As Cachorra. Shows escrachados, bagaceira orientada por arcabouço teórico benjaminiano (louca, Chupeta gritava no palco: “Isso aqui é Walter Banjamiiiiiin!”), materialista dialético: a banda faria três álbuns e morreria sob o fascismo neoliberal em que se meteriam com força.
Acabou antes. Os shows sensuais, simuladamente pornográficos, o caos teórico promovido nas aparições de TV, e a própria noção de que o capitalismo detona a arte, e a inclusão disso no programa e na atitude política do grupo foram coisas que o mercado não aguentou. Para você ter uma ideia: Cheque Girls, bem como os álbuns seguintes, contratados pela Deckdisc (a mesma dos Mamonas Assassinas), tinham seus direitos guardados por dez anos, e passariam a domínio público em seguida.
Ir a fundo no caos das Textículos de Mary mostra coisas que nós mesmos que estamos no circuito da cultura não gostamos de ver: que o sucesso é o fracasso do fracasso, que a regressão é quase sempre necessária para avançar no comércio de arte, e que a arte queer mesmo é capaz de botar uma bomba nisso e, ao menos como projeto artístico, explodir junto.
Como estou agora escrevendo de Belgrado, escolhi a canção Natasha Orloff, inspirada no esquema internacional de prostituição pós colapso da URSS.
Hugo Lorenzetti Neto (Campinas, 1978) é poeta, tradutor, ensaísta e diplomata. Fez Letras na Unicamp, e agora vai do mestrado ao doutorado também em Letras na UFRGS. Estuda processos de criação, escrita e performance, tradução e transcriação em perspectiva queer. Atualmente mora em Luanda, Angola. "24" e "A máquina extraordinária" são seus primeiros livros de poesia, lançados em 2021, pela Zouk.
A #poesiaqueer faz parte de nosso projeto de curadorias temáticas, onde convidamos escritoras(es), tradutoras(es) e pesquisadoras(es), para indicar e refletir sobre questões do fazer literário em nossos dias. Confira outras das iniciativas em nosso blog!
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