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Água Salobra de Zainne Lima da Silva na Primavera Pretapalavra, por Oluwa Seyi



Salve, Salve, pessoal! Que alegria iniciar mais um texto aqui nesse nosso cantinho de afeto e poesia, que é o #Pretapalavra. Tem sido uma experiência bonita e de companhias que me honram por aceitarem o caminho compartilhado. Hoje, para não ser diferente, trago na barra da minha saia uma das escritoras que mais tenho o prazer de ser contemporânea e parceira nos processos de escrita e de primaveras.


Não sei precisar exatamente quando conheci Zainne, mas com certeza foi em algum corredor da faculdade de Letras na qual nos formamos. Hoje, a Universidade de São Paulo é muito mais diversa e colorida que nos anos em que cursei a graduação, mas, naquela época, era especialmente raro encontrar pessoas negras, então, sempre que tinha a sorte de cruzar com alguém parecido comigo, eu quase involuntariamente soltava um sorriso e recebia outro de volta. Alguns desses sorrisos já me salvaram em dias dificílimos; tenho certeza, mesmo sem me recordar com detalhes, que, em meu primeiro encontro com Zainne, trocamos um par desses

sorrisos salvadores.


Antes mesmo de conhecê-la pessoalmente, eu já havia ouvido falar dela e admirava sua trajetória. Zainne ostentava um lugar que eu almejava, mas não tinha segurança e esperança de ocupar então: ela era uma estudante escritora. Ela escrevia e, ao contrário de mim, à época, deixava esse dado sobre si bastante visível. Ela escrevia e nossos colegas e até professores sabiam e liam sua produção. Isso era gigantesco! — pelo menos para a menina que eu era. Talvez soe bobo definir dessa maneira, mas dizer-se publicamente escritora ou escritor no espaço e nos anos em que frequentamos a Letras/USP, era um ato, no mínimo, corajoso. Não éramos incentivadas à escrita literária e muitas de nós, a bem da verdade, fomos desmotivadas de seguir escrevendo, com raríssimas e belas exceções. Eu mesma passei a trancafiar o que escrevia depois de ouvir de um docente que meu trabalho literário não era suficientemente bom. Então, Zainne, em sua escrita deveras pública, era um farol; era uma prova encantadora de que nem todas as pessoas escritoras daquela faculdade desistiam daquela porção tão importante de si para não serem insensivelmente julgadas. E graças à não desistência de Zainne, eu desisti de desistir. Mais: graças à segurança e à esperança que ela me forneceu, anos depois, que hoje me assenhoreio da escrita literária como talvez de nada eu já tenha feito, com tantas certezas.


Quando já tínhamos alguma proximidade, mostrei-lhe um poema meu, e ela me disse algo que eu sei que jamais serei capaz de esquecer, porque mudou radicalmente minha vida: “eu gostaria de ter escrito esse poema”. Zainne, a estudante escritora, com livro publicado, convidada para falar em festas literárias, gostaria de ter escrito um poema meu? Não à toa, esta frase se tornou um dos meus elogios favoritos para textos que me apaixonam. Ela exprime, para mim, o exato sentimento de achar algo tão belo a ponto de desejar que tivesse nascido de si. E foi saber que tal sentimento invadiu o peito de Zainne depois de me ler que me fez desistir oficialmente da desistência e finalmente florir: aquele poema, “Entremeio", e mais três textos foram os primeiros que publiquei em minha vida, na revista Mallarmargens — de cuja editora, Amanda, Zainne me colocou em contato logo depois de me ler. Em seguida dessa revista, algumas outras; as coletâneas, meu zine, meu livro, os prefácios e posfácios e este #Pretapalavra, o qual escrevo especialmente emocionada: nada disso, depois daquela leitura tão amorosa de Zainne, seria possível, real ou meu. Foi ela quem excitou minha primavera. Sou imensamente grata àquela troca espontânea de sorrisos — em algum momento de 2016?: o bater de asas da borboleta que causou o furacão imparável da minha relação com a escrita deveras pública. Tão público quanto meu carinho por Zainne e sua escrita arrebatadora.


Confesso que quase recusei quando ela me convidou para escrever a orelha de seu livro mais recente, Água Salobra (2024, Ed. Primata), mas não era justo declinar por dois grandes motivos. O primeiro deles é que esse texto seria o fechamento de um ciclo de troca, afinal, Zainne é a autora do posfácio do meu primeiro livro; o segundo motivo é que eu só quis declinar por sentir que não tinha vocabulário emocional para apresentar ao mundo o livro de uma pessoa tão importante para mim. No entanto, não pude dizer não. Fazê-lo seria desrespeitar tão belo convite, em seu significado afetivo e de confiança, e também desrespeitar o próprio lugar da literatura em mim. A possibilidade de produzir algo que não fizesse sentido ou não estivesse à altura do livro não deveria estar no meu horizonte porque, com certeza, não estava no horizonte de Zainne — ou o chamado nem teria acontecido, pois ela é muito séria e criteriosa com seu trabalho. Mais uma vez, ela viu em mim o que eu ainda não conseguia. Depois de ler o livro, eu estava em um lugar verdadeiramente oposto ao inicial: eu simplesmente tinha o mundo inteiro pra dizer sobre a obra e um diminuto espaço físico — o mundo inteiro em menos de três mil caracteres? —, então foi necessário escrever e reescrever até que coubesse algo perto de tudo que o livro solicitava, naquela exata medida. “Alquimia” foi o termo e o fundamento que organizou minha escrita e não o escolhi em vão. Gosto muito de pensar que certas coisas não podem ser explicadas pela lógica e acontecem por encanto. Nos movem sem uma explicação que caberia em um livro de ciências. Cabem, por sua vez, em livros de poesia; cabem, por sua vez, em Água salobra. Cabe conhecer mais das pedras, das flores, das onças, dos naufrágios e do que conecta tudo isso, a cada virada de página, faminta de mais poesia. E quem costura nossa atenção às palavras é a mão bordadeira de despertares de Zainne.


Aprendi que as águas turvas, que alguns desavisados chamariam de suja, compreendem, na verdade, um insólito estado de coisas. Não são doces nem salgadas; são maléficas para algumas espécies, mas um tônico para outras; são as águas originárias, inseparáveis da terra, que Nanã cedeu a Oxalá para a criação da humanidade. E por isso tudo, são também primaveris. São a beleza e o desafio do primórdio. São a vida e seu infinito de contradições, que jamais se excluem, mas complexificam-se. Água sabe corroer, enferrujar, derreter, afogar, e nenhuma dessas sabenças lhe tira o título de sinônimo de vida. Talvez seja exatamente por saber extinguir e ainda assim preferir sustentar que esta líquida senhora nos seja tão cara. E isso eu só entendi quando bebi e não morri da Água salobra de Zainne. Nascida e criada em Taboão da Serra, cidade vizinha à capital paulistana, Zainne é escritora, professora e pesquisadora. Essas três ocupações dialogam tão intimamente que em muitos momentos se misturam. A poeta pesquisa para lecionar, a professora verseja para entender, a pesquisadora ensina enquanto corporifica sua poesia: tudo isso samba lentamente junto e por essa razão divisamos uma forma tão singular (aguda, sentimental, sedutora, lúcida) de ler o mundo. Além de Água salobra, escreveu mais três obras — Pequenas ficções de memória (2018, Ed. Patuá), Pedra sobre pedra (2020, Ed. Venas abiertas) e Canções para desacordar os homens (2023, Ed. Venas abiertas) — e possui muitas publicações em revistas e coletâneas.


Dentre os livros sobre os quais discorrerei neste nosso #Pretapalavra, o de Zainne é o mais novo. As leitoras mais atentas, sentirão nos dedos o calor do papel recém-impresso, e por isso acho importante não falar aqui de nenhum poema em específico para não roubar qualquer ineditismo largamente merecido. Quero que fique deste texto, além da vigorosa sugestão de que leiam a obra tão logo possam, o meu testemunho feliz por poder ter minha percepção eternizada e reiterada, sempre que o livro de Zainne se abre. E não que eu considere que minha leitura nunca vá se alterar, mas eu amo saber que posso encontrar uma fotografia mais ou menos fiel do

êxtase que senti quando li Água salobra pela primeira vez. Esse é um dos presentes da escrita: o reencontro com o que permanece. Me honra saber que existe e também é de Zainne um pedaço de mim remexido por sua poesia.


E para fechar este texto tão afetivo, que é também um desejo de feliz aniversário à poeta (sim, este texto vai ao ar no mês em que Zainne completa 30 anos), mais uma vez bendigo a sorte de ser companheira de vida de uma das minhas principais referências literárias contemporâneas. Além disso, quero compartilhar com vocês, nosso grupo querido de leitores, a alegria de receber Zainne no #Pretapalavra, e saber dela sobre suas inspirações femininas na literatura. Seja bem-vinda, querida. Aguardo ansiosa para, mais uma vez, te ler e sentir o perfume de suas flores.












Oluwa Seyi nasceu em São Paulo, na década de 90. É poeta, pesquisasora, critica literária e percussionista. Possui graduação e mestrado em Letras pela Universidade de São Paulo, e atualmente desenvolve pesquisa de doutorado também em Letras, na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, pela mesma instituição de ensino. Seus interesses de pesquisa são a produção artística de mulheres negras e a representação da experiência afrorreligiosa nas artes. Autora do livro de poesia O que há de autêntico em uma mãe inventada (Ed. Urutau, 2022), do zine estudo poético do corpo (2021, edição independente) e da plaquete digital Poemas que atravesssam meu corpo negro & fêmeo (2024, edição independente) . Tem poemas, contos e artigos publicados em revistas e antologias literárias e acadêmicas de diversos estados do país, como Cartas para Esperança (Ed. Malê, 2022) e Cadernos Negros 44 e 45 (Ed. Quilombhoje, 2022/2024). Além da escrita literária, interessa-se em tradução de poesia e escrita para áudio-visual. Atualmente é integrante do Sarau das pretas, coletivo artístico-literário gestado por mulheres negras. Escreve desde que se recorda e não consegue imaginar a si mesma longe do lugar de produtora, apreciadora e crítica de literatura.














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